Berlin, Lima Dez. 1 (TD®R): A propósito de "O Quilombismo" por José María Durán

Berlim, Lima Dez. 1 (TD®R): A propósito de "O Quilombismo" por José María Durán


"O Quilombismo retoma a história de Zumbi dos Palmares , um dos principais líderes do levante escravo durante o século dado no nordeste do atual Brasil."

por José María Durán

No complexo paisaje cultural de Berlim, a Haus der Kulturen der Welt (HKW) destaca-se por ser uma das instituições que melhor sabiam manter a coerência ao longo dos anos. Se transformou em um espaço no qual seu programa polifacético pode ser visto a partir da perspectiva de “histórias entrelaçadas” que aspiram a descentralizar as narrativas hegemônicas e nacional-chauvinistas características dos museus de arte e da história que proliferam nas capitais europeias.[1] Black Atlantic, Principio Potosí, os festivais Wassermusik… o HKW contribuiu decisivamente para colocar em questão a premissa civilizadora e o universalismo próprio do eurocentrismo.

Concebida como um dos edifícios mais singulares da exposição internacional de arquitetura Interbau (IBA 57),[2] a instituição se reinventa como HKW, a Casa das Culturas do Mundo, em 1989, é decir, em um momento caracterizado pela virada cultural nas ciências sociais e na política econômica do consenso de Washington, cuya terapia de choque, auspiciada pelas As instituições de Bretton Woods, não desempenharam apenas um papel fundamental na liberalização econômica desde então chamado de Terceiro Mundo, mas também na transformação neoliberal do antigo espaço socialista a partir dos anos noventa e que iniciaram um novo processo de acumulação que impulsionou na Europa a liderança capitalista da Alemanha. Então, de ser em seus inícios um símbolo da aliança germano-americana clave nas estratégias de manifestação cultural propias da guerra fria,[4] la HKW passou a ser uma fuga do mundo no ocidental apenas no final da era de los três mundos[5] e quando o serviço ao aliado norte-americano deixou de ser rentável em termos de política cultural. O vestíbulo Sylvia Wynter, o auditório Miriam Makeba, o espaço Marielle Franco e hoje buena fe de ello. O objetivo de provincializar a Europa[6] foi inscrito no próprio edifício. Ainda que a este respeito, poco haya que reprocharle à instituição. A mudança recente na direção não foi mais que aprofundada neste aspecto e na exposição O Quilombismo celebrado entre junho e setembro de 2023 pode ser considerado como o início de uma nova era na história do HKW que tudo indica que será caracterizado por sua ambição de contribuir para o discurso decolonial. Embora isso não implique que HKW siga formando parte da diplomacia e da política cultural internacional do Estado. Desde sua construção em 1957 como palácio de congressos, a instituição sempre esteve sob a tutela do Ministério de Assuntos Exteriores. Sua localização ainda não foi inocente. Situada muito perto da Porta de Brandeburgo, na época da guerra fria, estava praticamente frente às tropas soviéticas; hoje fica no meio do bairro, onde fica o governo federal.

O programa do HKW não compreende a ênfase das perspectivas teóricas que ganham relevância no final da época dos três mundos: a abordagem das histórias entrelaçadas (história emaranhada) e dos estudos poscoloniales. Mas se ambas as perspectivas ainda permanecem ciertas deudadas com a episteme ocidental, houve o enfoque decolonial que nos últimos anos ambicionou de maneira mais radical rompendo com o hechizo moderno e ilustrado. Neste contexto, o programa do HKW enlaza à perfeição com a ideia da “diferença colonial” desenvolvida por Walter Mignolo.[8] Basicamente, a exposição O Quilombismo foi tratada por ela.

O Quilombismo retoma a história de Zumbi dos Palmares, um dos principais líderes do levante escravo durante o século dado no nordeste do atual Brasil. “Não existe outra figura que personifique as histórias, as filosofias, as estruturas de governo, as resistências e as utopias do quilombismo como Zumbi”, escreve em sua contribuição ao Leitor do Quilombismo o recentemente nomeado diretor e comissário-chefe do HKW Bonaventure Soh Bejeng Ndikung.[9] São essas utopias, histórias, filosofias, estruturas de governo… sobre as que giraram o programa de O Quilombismo que, de alguma forma, quis contribuir para que a história da luta das pessoas escravas pela emancipação, o cultivo de uma sociedade baseada em princípios democráticos igualitários, o espírito radical de emancipação cultural, é uma história que nunca deixa de ser contada.[10] Nesta história, o termo quilombismo se converte no conceito chave que encapsula, em palavras de uma das personalidades mais importantes do movimento negro no Brasil, Abdias do Nascimento, a alternativa de uma organização política negra democrática popular. O ensaio de Abdias do Nascimento “Quilombismo: Uma Alternativa Política Afro-Brasileira” de 1980 é o texto chave ao lado de qual se articula a exposição. Complejo, o texto percorre o meio caminho entre o ensaio acadêmico, o manifesto e o panfleto.

O Quilombismo retoma a história de Zumbi dos Palmares, um dos principais líderes do levante escravo durante o século dado no nordeste do atual Brasil. “Não existe outra figura que personifique as histórias, as filosofias, as estruturas de governo, as resistências e as utopias do quilombismo como Zumbi”, escreve em sua contribuição ao Leitor do Quilombismo o recentemente nomeado diretor e comissário-chefe do HKW Bonaventure Soh Bejeng Ndikung.[9] São essas utopias, histórias, filosofias, estruturas de governo… sobre as que giraram o programa de O Quilombismo que, de alguma forma, quis contribuir para que a história da luta das pessoas escravas pela emancipação, o cultivo de uma sociedade baseada em princípios democráticos igualitários, o espírito radical de emancipação cultural, é uma história que nunca deixa de ser contada.[10] Nesta história, o termo quilombismo se converte no conceito chave que encapsula, em palavras de uma das personalidades mais importantes do movimento negro no Brasil, Abdias do Nascimento, a alternativa de uma organização política negra democrática popular. O ensaio de Abdias do Nascimento “Quilombismo: Uma Alternativa Política Afro-Brasileira” de 1980 é o texto chave ao lado de qual se articula a exposição. Complejo, o texto percorre o meio caminho entre o ensaio acadêmico, o manifesto e o panfleto.

Em outro dos textos clave de O Quilombismo Leitor: “O conceito de quilombo e a resistência cultural negra”, publicado em 1985, a pensadora e ativista brasileira Beatriz Nascimento mostra como o final do regime esclavista a final do século diecinueve o quilombo se transforma em uma construção ideológica. Sua aura, escreve Nascimento, alimenta “a consciência nacional em seu anel de libertação, precisamente por seu legado como instituição concreta e livre que existe paralelamente ao regime dominante desde há três séculos”; de lá que o quilombo mar foi registrado como uma forma de desejo pela utopia.[11] Então, o quilombo se ficcionaliza e entra na formação dos imaginários de resistência em narrativas tão populares quanto acadêmicas. Esses imaginários são importantes e parte do atrativo atual do quilombo é o resultado de uma construção ideológica que combina questões identitárias ao redor do nacionalismo negro e do panafricanismo com outros universais relativos à igualdade e à emancipação humana. Embora os quilombos nunca tenham desaparecido, mais bem foram invisibilizados, suas populações estigmatizadas e, em geral, foram presas das políticas desenvolvidas e extrativistas do Estado em mãos da mesma classe social que antes haviam sido perseguidas pelas comunidades insurgentes. Um passo importante foi o reconhecimento, por parte da Constituição Federal de 1988, da existência legal de “remanescentes de quilombos”, para que os órgãos de direito de cidadania e propriedade fossem controlados. Desta forma, o quilombo se patrimonializa como parte da identidade nacional do moderno estado burguês plurinacional. Este reconhecimento formal foi em sua maior parte papel mojado. As comunidades quilombolas continuam desamparadas diante dos abusos da elite econômica e política que exercem uma violência impune. No entanto, as comunidades existentes e suas lutas, além da questão identitária, nunca deixaram de estar associadas a uma questão fundamental: o problema da terra, é dito, o problema da transformação do campesinado autossuficiente em proletariado agrário ou, simplesmente, em campesinado despojado. Como escreveu Sylvia Wynter, autora que tem presença cierta em O Quilombismo, esta desvalorização que ocorre no terreno econômico está dialécticamente relacionada com a desvalorização de sua humanidade. No capitalismo, o racismo está organicamente inscrito na exploração. Esta contradição não permite reconciliação.

Embora os quilombos se vinculem à resistência física, fazendo até mesmo alusão à guerra de guerrilha, o que a exposição O Quilombismo ha querido instituir é, mais bem, um espaço de resistência cognitiva, um espaço para a imaginação. O quilombismo parece ter que ser encontrado no imaginário identitário o argumento propício para uma prática política que apenas se inscreve na representação. Você é problemático. Aquele que aspira é dar espaço a uma pluriversalidade de práticas que junto a diferentes sistemas espirituais e cosmológicos “desuniversaliza os modelos de experimentar e preservar a cultura, descobrindo modos de reparar a desigualdade e modos de compromisso com a cultura como atividade viva.” Enquanto Mignolo abraza o potencial epistémico de pensar desde a diferença colonial, instituições como a HKW abrazam o potencial de representá-la.

O resultado instrutivo é encontrar uma visão de propostas semelhantes em outras instituições cortadas pelo mesmo patrão. Este foi o caso de Anti-colonial Interventions no Museo Ludwig de Colonia (8 de outubro de 2022 a 5 de fevereiro de 2023) ou Chosen Memories no MoMA de Nueva York (30 de abril a 9 de setembro de 2023). Em Colônia, quatro artistas latino-americanos foram convidados a intervir na coleção permanente do museu com o fim de fazer histórias visíveis de opressão, exclusão e discriminação naqueles que manejaram o museu ao longo de sua história, produzindo para ele um glossário anticolonial que completou as intervenções in situ dos artistas. Chosen Memories reuniu o trabalho de 40 artistas da coleção de arte latino-americana de Patricia Phelps de Cisneros com o propósito de “desarticular os efeitos persistentes da mirada colonial”, de abordar criticamente “as estruturas coloniais [que] continuam condicionando os sistemas de valor em torno das culturas ancestrais, do trabalho e da naturalidade”, assim como de desafiar “as jerarquías implícitas… através de obras que reconhecem e revitalizam patrimônios culturais desvalorizados ou esquecidos pelas correntes dominantes”.[14]

Onde há tal interesse em abrazar o ângulo pos-, decolonial? Mignolo avançou o programa deste tipo de instituições implicadas hoje no giro decolonial: a “pluriversalidade em tanto que o projeto universal não tem como objetivo mudar o mundo, mas sim mudar as crenças e a forma de entender o mundo, o que conduzirá a que modifiquemos (toda) nossa práxis de vida no mundo”. A pluriversalidade, a universalidade ocidental tem por direito a coexistência com outras cosmologias, como mais. Mas a ênfase nos diferentes universos emocionais e cognitivos nos quais se situam as comunidades e as culturas tem sido, precisamente, uma das premissas da virada cultural apenas na época dos três mundos e em consonância com as políticas de desenvolvimento impulsionadas pelo consenso de Washington interessado em questões relativas ao intercâmbio cultural, à cooperação cultural, ao papel da cultura para o desenvolvimento, etc.[16] Há uma transformação liberal clássica na mensagem de Mignolo, mas há um posicionamento epistémico diferente. Os cantos da sirena do pluralismo mostram um lado menos amável se nos fijamos no pluralismo autêntico que é o das mercadorias. Como podemos liberar ou emancipar epistemicamente as pessoas que estão sujeitas às cadenas da lei do valor sem romper as primeiras cadenas? No corpus liberal das lutas da razão, ele permite que o librepensador passe cómodamente por alto os condicionantes materiais que determinam a existência de contos de luta. É aí que a representação ou a porta em cena é um lugar idóneo para pensar a radicalidade sem temer as consequências. Esta distância tem sido tradicionalmente a morada da episteme burguesa, por muito que le pese a pensadores decoloniales como Mignolo. E a mirada que expressa esta distância, tão bem representada no conhecido quadro de 1818 de Caspar Friedrich: O caminhante sobre o mar de nuvens, é a mirada do capital que trata tudo o que tem ante si desde a perspectiva da produção de valor. Sekula e Burch calcan esta disposição em The Forgotten Space. Trata-se da imagem icônica do porta-conteúdo surgindo do oceano. Mas o que nos mostra diante da imagem sublime do oceano é a disposição do “trabalho morto” que replica a disposição dos corpos amontonados no navio negro, precisamente o que cobre a neve que contempla o caminhante de Friedrich.

Resulta paradójico que no espaço de resistência e solidariedade radical aberto por O Quilombismo, com necesarias alusões às políticas do corpo, por exemplo, na brilhante obra de Rotimi Fani-Kayode, à celebração da vida e à resistência com o coletivo afro-uruguaio Hermosa Intervenção, ou à comunidade através de do trabalho de Bernardo Oyarzún, entre outros, se deslicem alusões mais sutis, e necessariamente superficiais, ao imperialismo chinês, à perseguição judicial ou à visão bipolar do mundo próprio da guerra fria, os quais responderam às exigências ideológicas da classe política alemã. Não é de hoje que o HKW faz parte da diplomacia cultural alemã, como também da aspiração de universalismo que na Alemanha é facilmente contraposto tanto ao particularismo da direita identitária como à nostalgia do socialismo real. Mas se você habitou uma classe que na história moderna se apropriou do direito a falar em chave universal, essa foi a burguesia, e ele se tornou basicamente através do mercado, seu ideal de sociabilidade. Uma vez que esta universalidade consistente em garantir jurídica e politicamente as condições para a expansão sem limites do capital está em risco de se comprometer com as ameaças que aceitam desde o mundo global: guerras, emigração, BRICS…, é então que alzan uma vez mais sua voz e proclama: decolonicemos, decolonicemos, dadnos, por favor, o sustento espiritual que tanto precisamos da desumanização do mundo, otorgamos o regalo da pluriversalidade.[17] E o pensamento decolonial rapidamente colocou sua caixa de ferramentas teóricas ao serviço. Em “Quilombo, Camponeses Globais e Worlding Other”, Quỳnh N. Phạm é o engenho para evitar nomear o capitalismo. Para a pesquisadora da Universidade de São Francisco, a questão agrária é um problema de concepções: de um lado da arrogância ocidental com sua orientação colonial-moderna que reduz o campesinado ao subdesenvolvimento através de uma série de coartadas conceituais-terminológicas, de outro lado a conexão espiritual do campesinado com a terra e com o “trama da vida”. Mas o uso das palavras nunca é inocente e o “trama da vida” (teia da vida) remete a uma expressão afortunada de Jason W. Moore em Capitalismo na Teia da Vida, exemplo do ecomodernismo para que a questão não transforme o mundo de uma maneira diferente. O pensamento de que no pensamento decolonial não queria mudar o mundo, apenas queria mudar o pensamento ou a percepção do mundo, algo por outra parte típica do velho materialismo sensualista, conduzia uma inoperancia política flagrante e produzia uma estetização da política que lembrava a memorável conclusão de Benjamin sobre o esteticismo da política que o fascismo propugna. No entanto, o que Abdias do Nascimento estava plantando na filosofia política do quilombismo era algo bastante diferente. O Quilombismo passou pela política radical que se encontra na filosofia do quilombismo.

Nascimento descreve que as “ciências” produzidas pela intelectualidade euro-brasileira, europeia e norte-americana e que têm assistido à desumanização das pessoas de origem africana em favor dos interesses dos opressores eurocéntricos não podem servir às necessidades e aos interesses do povo negro. Obviamente, Nascimento não está apenas em sua reivindicação que formava parte do pensamento radical negro e que nos anos setenta Wynter já havia sido denunciado como a ideologia secular da burguesia. No sentido de que exige um conhecimento científico que está enraizado na experiência histórica e na identidade cultural dos povos oprimidos, poderia entender a reivindicação de Nascimento cercana do rechazo decolonial da episteme ocidental e do plantio de um pensamento desde a diferença colonial. Mas as exigências do pensamento decolonial são enganhosas. Nascimento tem um conhecimento que permite formular de uma maneira teórica adequada a experiência de períodos de opressão, resistência e luta criativa. Desta forma, o que Nascimento está exigindo não é outra coisa que o materialismo histórico; é dito, uma compreensão da realidade histórica a partir dos condicionantes materiais, e isso inclui os imaginários e as cosmologias. E mesmo Nascimento claramente rejeita qualquer forma de pensamento importante da Europa, que em princípio inclui o marxismo,[20] o materialismo histórico nace de uma premissa muito semelhante: que as herramientas conceituais herdadas da ilustração, sua economia política e sua moral abstrata, supõem um pensamento sesgado que le sirve de herramienta ideológica a una clase cujo único interesse reside em prolongar ao infinito a realidade da exploração capitalista. Por tanto, não é possível formular uma teoria da emancipação a partir destas herramientas. Walter Rodney escreveu que o socialismo científico significa a aplicação do método científico ao estúdio de qualquer situação dada. Não querer reconhecer a necessidade do pensamento científico equivale a querer manter a África numa condição atrasada, o que serve aos interesses do imperialismo. A este respeito, reivindicar a necessidade de uma análise científica e não ideológica da realidade material e, a partir desta análise, reivindicar a construção de um pensamento emancipador é o que basicamente fez Nascimento.[21] Cedric Robinson reconhece que, sem a intervenção teórica de Marx e Engels, a tradição radical no local em que a análise de Nascimento teve um peso conceitual que foi demonstrado ser tão importante para as periferias do sistema-mundo em sua resistência contra o imperialismo e o colonialismo. De igual forma, a contribuição do pensamento da periferia tem sido fundamental, e a filosofia do quilombismo quer ser uma transferência neste sentido. Nascimento menciona a tradição do comunitarismo ou comunalismo africano ou Ujamaa de que o quilombismo é usado tanto no sistema econômico. Não é algo que se tenha escapado a O Quilombismo que reconheça em Ujamaa uma das formas de igualitarismo político e económico sobre aquelas que refletem o programa expositivo.[24] Mas quando Nascimento esboça o sistema econômico do quilombismo baseado na propriedade comum dos meios de produção[25] está, basicamente, articulando um programa comunista, que é o que Rodney reconhece na experiência tanzana dos pueblos Ujamaa. Até que ponto este programa foi encontrado plenamente articulado no quilombo ou, mais bem, este é o ponto de partida na luta por sua consequência, está sujeito a discussão.[26] Mas eu decir que o quilombismo equivale ao comunismo ou que o comunismo de raiz africana é hoje anátema em qualquer instituição ocidental e, por suposto, em uma instituição com a história de HKW. Me pergunto desde então que permanecerei preso da episteme ocidental ou, melhor dicho, da episteme burguesa. Nenhum resultado foi tão estranho à presença marginal de Rodney em O Quilombismo e à revisão que se fez uma vez que se nos disse que o espírito da revolução se extinguiu. Precisamente Rodney, um pesador que foi testemunho de uma das experiências “quilombolas” mais importantes na história recente da insurgência e emancipação africana: Ujamaa.[27]

Se o quilombo supõe resistência e violência física contra os esclavócratas, essa violência foi expurgada de O Quilombismo. Ainda não foi plantado um desafio como aquele que trouxe Sartre em “Orphée Noir”, o ensaio de 1948 que ele escreveu de prefácio à antologia de Leopold Senghor Anthologie da nouvelle poésie nègre et malgache de langue française.

Aqui há homens negros parados, homens negros que nos miram; e quero que sinta, como eu, a sensação de ser visto. Porque durante três mil anos o homem branco desfrutou do privilégio de ver sem ser visto.[28]

Este confronto com o público maioritariamente europeu e ocidental não teve lugar. AO Quilombismo le ha faltado rabia. No espaço da representação, o público pôde admirar a navegação desde a posição segura e privilegiada da terra firme. Se admiran sus restos, mas o sangue não salpica.[29] Fanon le objeta a Sartre se esqueceu de que a persona negra sofria em seu corpo de um modo muito diferente a cómo experimentar a persona branca: "¡Mamá, un negro! ... De un hombre se exigía una ducta de hombre. De mí, una ducta de hombre negro, o, pelo menos, una ducta de negro. Yo suspiraba por el mundo y el mundo me amputou mi entusiasmo. E Fanon responde: "¡El hermoso negro le manda a la mierda, señora!... De un solo golpe conseguía das cosas: identificar os meus inimigos e montar um escândalo." Em sua dialética muito hegeliana, Sartre esqueceu que a promessa de reconciliação inscrita na negritude antes da afirmação supremacista branca é nada se ignora a experiência vívida. De fato, em “Orphée Noir” Sartre diz que a negritude não se constrói a partir da experiência e é o momento débil da progressão dialética, ao que Fanon replica: ahí lo tienes, assim que “no es con mi miseria de mal negro, mis dientes de mal negro, mi hambre de mal negro con lo que modelo una antorcha para prender o fogo que incendiará este mundo, desde que a tocha esteja ali, esperando esta ocasião histórica.”[32]

Paradigmático por sua alusão a Zumbi dos Palmares foi Queimada, o largometraje de 1969 de Gillo Pontecorvo. A figura intelectual atrás de Queimada é, por suposto, Fanon. No contexto da longa década da sessão, o filme de Pontecorvo não escapa à violência, mas afirma: é o meio necessário para que as massas desposadas alcancem a consciência de ser uma coletividade histórica.[33]

Não é noh mistri,

Com a história,

Não é noh mistri,

Nós vencemos [34]

Assim, a cantaba de Linton Kwesi Johnson em 1984 foi a razão das reviravoltas que aconteceram no final dos anos setenta e no início da ochenta, principalmente em Londres. Em Queimada, o líder insurgente José Dolores avisou ao agente britânico William Walker: "Tenha cuidado. Você pode se separar como vender o açúcar; mas não esqueça de quem quer cortar a caña." [35]

Não é por acaso que toda a história da armada de libertação do poder colonial que Fanon teoriza é muito semelhante à que conhecemos de Zumbi dos Palmares: primeiro se livrou da guerra de libertação e, uma vez conseguida, a luta continua com a construção nacional. De fato, tanto Abdias do Nascimento quanto Beatriz Nascimento eram conscientes de que a luta contra o poder colonial havia começado na África muito antes, e ainda não havia cessado.[36] Como foi possível evitar este cenário.

O barro da revolução é uma obra extraordinária em que a artista Paloma Polo documenta a Guerra Popular Prolongada do Novo Exército do Povo, uma organização armada filipina qualificada de terrorista pela União Europeia e pelos Estados Unidos. Obviamente, a obra não foi formada por O Quilombismo. Polo vincula a luta armada atual com todo o longo processo de luta anticolonial que se iniciou contra a coroa espanhola e que continuou contra o poder estadounidense. Não devemos esquecer o papel estratégico chave que joga Filipinas no confronto entre a China e os Estados Unidos pela hegemonia na Região do Pacífico Ocidental. Depois da eleição de Ferdinand Marcos Jr., o filho do antigo ditador Ferdinand Marcos, a balança foi transferida para o lado estadounidense, cujo exército contará com novas bases militares apontando para Taiwan e para o mar da China Meridional. Todo ele na costa de um povo que leva séculos sendo dizimado. É o ciclo de “A guerra silenciosa”… e, como no caso de Zumbi dos Palmares, a luta revolucionária nas Filipinas também é uma luta na qual se constrói uma comunidade de iguais em que todas as formas de expressão e orientação sexual são bem-vindas. A igualdade de gênero não se negocia.

O trabalho do Novo Exército do Povo… se baseia em três pilares fundamentais: a consciência, a organização e a mobilização do povo, que ao longo do tempo conduz à criação de órgãos de autogoverno (“construção da base”), à aplicação da revolução agrária (em diferentes graus, dependendo da região) e à luta armada. Tudo isso só pode lograr uma vontade inquebrável de aprender e o impulso de mudar as coisas.

Mas a parte vertebral do projeto educativo é o amadurecimento psicológico, emocional, social e político de cada pessoa. Este processo é denominado "remodelação" e consiste na rejeição das formas burguesas e capitalistas de socialização.

Outra questão essencial é a manutenção de uma democracia horizontal dentro de uma sofisticada situação de relações e responsabilidades. Os direitos, privilégios e liberdades são iguais para todas as pessoas… sem exceção e independência do rango. Se ele remodelou a linguagem, ficando terminantemente proibido de dar ordens de forma brutal, assim como insultar, ignorar ou avergonzar a qualquer um. Em resumo, é proibido recorrer à violência em qualquer forma de comunicação ou relacionamento.

Existem regiões e províncias administradas pelo Governo Popular. Além disso, o caráter transitório que caracteriza as estruturas sociais em meio a uma luta prolongada salvou essas comunidades do tipo de política concebida pelos poderes de um Estado e imposta a priori. A sobrevivência e o avanço da revolução exigem que, uma vez, provoquem uma transformação nos indivíduos que não estão com ela, assim como em suas relações com seu ambiente e com a sociedade. Grandes faixas de regiões rurais remotas se transformaram em uma espécie de laboratório de vida. Os membros do Novo Exército do Pueblo que aparecem em meu filme e em minha investigação não são apenas parte da guerrilha: participam ativamente da construção de um mundo diferente nascido no trabalho cooperativo.[37]

Esta larga reflexão de Paloma Polo sobre sua experiência com a guerrilha comunista filipina é significativa. Pouco diferente de Zumbi dos Palmares. Se trata de um quilombo. O problema da terra é fundamental num país como as Filipinas, habitado majoritariamente por comunidades camponesas e indígenas pobres e despossuídas, vítimas da geopolítica do imperialismo. Decía Fanon que "nos países coloniais só o campesinado é revolucionário. Não há nada que perca e tudo por ganhar. O campesinado, o desclasado, o hambriento, é o explorado que descobre mais pronto que só vale a violência."[38]

Assim, detonante de tantas lutas ao longo do mundo, desde o Novo Exército do Povo, passando pela insurgência naxalita na Índia,[39] até a luta que levou a cabo o MST no Brasil e na Via Campesina, onde a ordem da terra chegou em riesgo não é apenas enojar a geopolítica militar do imperialismo também e seus aliados do agronegócio, seu poder econômico na Alemanha para nada é desprezível. BASF, Bayer-Monsanto… O que os conglomerados do agronegócio sabem, a ciência é certa, que a experiência do quilombo significa para seus benefícios. Para esses conglomerados o problema é óbvio: trata-se do direito à terra. Decía Sylvia Wynter que mesmo os conquistadores sonharam em capturar ouro o cebo que foi oferecido fora da terra. E continua sendo da mesma maneira para as grandes empresas do agronegócio e da indústria extrativa.[40] É dito que não se trata de cosmologias nem de epistemes, o problema é um problema materialista: reivindicamos categoricamente seu direito à terra, escrito por Mariátegui.[41] O MST vincula sua luta pela reforma agrária popular à luta contra o racismo agrário e o racismo medioambiental e entende sua própria “forma acampamento” como hereditária do legado revolucionário da “forma quilombo”.[42] Poderíamos situar quilombos como o MST ou o Novo Exército do Povo, es decir, a “forma quilombo”, no contexto de uma longa tradição insurgente: la de la comuna, es decir, la de las rebeliones comuneras que tanto tienen en común com as conquistas do quilombo.[43] Ele mostraria que desde os albores do regime esclavócrata e capitalista existe uma insurgência permanente que levou séculos revolucionando formas de vida e cultura. Bosteels a crítica ao marxismo ocidental e a Marx do Manifestante Comunista à luz do último Marx, este é o Marx dos cuadernos etnográficos, sua ênfase na Comuna de Paris de 1871 como a autêntica origem da comuna. Mas as inexatidões nas quais Marx incorreu em relação a certos desenvolvimentos nas periferias foram explicadas no contexto da evolução do seu pensamento econômico, que ainda mostra cierta inmadurez em textos como o Manificado Comunista, argumentou Katz.[44] O exame das comunas indígenas que levou a cabo Bosteels tornou possível pensar a origem da “forma comuna” em um momento histórico anterior às experiências insurgentes na Europa. O quilombo, assim como a transmissão da filosofia do quilombismo, é universal neste contexto. Pues bien, são esses quilombos que O Quilombismo invisibilizou. Esta invisibilização é uma decisão política. E não digo por desprezo as obras apresentadas na exposição que são em muitos aspectos brilhantes. Digo em relação a um programa que desarmou a interpelação diretamente política e a violência que inevitavelmente se encontra na origem das obras expostas.

Ao longo do que está sendo abordado, vale a pena parar para refletir sobre aquilo que Daniel Bell decidiu do pensamento crítico nos anos sesentas: que em seu radicalismo cultural havia deixado a política para um lado.[46] Uma das consequências deste divórcio, Señala Denning,[47] é que durante boa parte da época dos três mundos, entre os anos quatro e ochente do século passado, parecise que cultura e trabalho não tiveram relação alguma: em definitivo, não havia “frente cultural” ou, com outros termos, não havia solidariedade política real entre as classes trabalhadoras e intelectuais. A Nova Esquerda no Ocidente foi unida de bom ganho ao código da “metafísica do trabalho” enunciada por C. Wright Mills em 1960.[48] Ele foi equivalente a invisibilizar o trabalho. A visão de Bell é tremendamente sesgada, mas eu o sirvo para refletir sobre o que está acompanhando o giro decolonial das instituições culturais europeias. Você tinha então razão para Marx quando escreveu que a história se repetia, mas a segunda vez como farsa? A este respeito, vale a pena colocar frente a frente as exposições que vocês tiveram lugar em HKW em um lapso de pouco mais de dez anos, mas em muitos sentidos são diametralmente opostos: Principio Potosí e O Quilombismo. O que aconteceu nesses últimos dez anos foi, precisamente, o giro decolonial.

O que mais me interessa no Princípio Potosí é sua articulação dialética. Algo que me parece de grande importância. Dialética no sentido de um modo de apresentação que trabalha até seus limites. Limites porque o Princípio Potosí ecoou muitos elementos que são ajenos à montagem expositiva tradicional para visibilizar sua tese, abrangente, para visibilizar sua infraestrutura ou armazém. Desde alusões poéticas como o hilo que remete aos quipus que entrelaçam todo o conteúdo expositivo, visibilizando a exposição como uma totalidade de relações, passando pelo uso de uma linguagem visual sócio-pedagógica, até obras de arte que são tendenciosamente[49] empleadas para dar sentido à tese expositiva. Todo ele contribuiu para configurar uma exposição que aparecesse ao público como uma totalidade completa sem domínio. Não é tão estranho que isso tenha acontecido na densidade barroca do Príncipe Potosí e que esteja relacionado com Wunderkammer ou câmera de maravillas.[50] O caráter barroco da exposição é crucial, mas há menos que ver com a câmera de maravilhas e mais com a montagem dialética. Não podemos esquecer que a câmara das maravilhas significou como instrumento de acumulação de capital natural e cultural na forma de objetos que foram despendidos para alimentar as necessidades e os desejos de expansão colonial das monarquias europeias. A relação de Princípio Potosí com o barroco latino-americano é decisiva e no sentido do ethos barroco daquele que conversou Bolívar Echeverría e que só se deixou de fazer para reconquistar estabelecendo uma relação contraditória entre a “forma natural” e a “valorização do valor”.[51] A forma dialética do ethos barroco seria um tema a ser explorado, mas não vou entrar agora. Em qualquer caso, se a acumulação originária tiver sua correlação com a câmera de maravillas barroca, mesmo que ele dissimule através de seu despliegue erudito, o Príncipe Potosí despliega uma câmera de maravillas del revés, a volta à montagem barroca e o exponha como artifício poniendo ao descobrir seu funcionamento e criando uma história a contrapelo que ecoa por tierra as pretensões enciclopédicas de Wunderkammer; de aqui a ideia de que toda a montagem do Príncipe Potosí é uma montagem dialética. Em seu caráter de tese, o Príncipe Potosí foi uma exposição sujeita a contínuas revisões e, o que é mais importante, revelou a necessidade urgente de um museu social.

O quilombismo foi uma oportunidade perdida. Ha querido ser o que não pude ser. No interesse de que as obras estejam disponíveis por si só, O Quilombismo foi exibido como uma exposição trampa. Sua interpelação sequestrou as propostas, isto é, seu compromisso inegável com a realidade, em uma ilusão de práxis transformadora que não é tal. Tanto que a exposição decolonial supôs um espinho de agência e uma realidade de aquiescência.

A artista Daniela Ortiz falou sobre sua intervenção no Museu Ludwig de Colônia a seguir:

É importante saber que atualmente dentro do que vem a ser as indústrias culturais da arte contemporânea está dando um segundo saque, ou uma continuação do saque cultural colonial que se deu no contexto do mundo global. Vendo como muitos dos artistas dos seguros que desejaram desenvolver seu trabalho em seus territórios, em seus países não podem fazer isso porque não há recursos econômicos para fazê-los aqui, para que sua própria gente veja seu próprio trabalho. Por outro lado, vemos como, por exemplo, muitas das coleções dos países europeus, dos grandes museus europeus estão adquirindo obra, arquivos dos artistas do mundo todo e, por outro lado, abrangem, levando a produção cultural, o fazer cultural dos artistas de lá para esses museus… Por qual creo é bem necessário e importante também abriu a conversação com a complexidade do que supostamente se trabalha com esses tipos de museus e de como há uma maquinaria com as indústrias culturais da arte contemporânea de uma continuidade do saque e da exploração colonial no plano cultural.

Creio que é muito importante ter em conta uma questão concreta, que esses espaços públicos do contexto europeu, esses museus públicos, essas instituições, são sustentados em muitos casos com recursos públicos que não são apenas vienen do trabalho da classe trabalhadora branca europeia, mas também vienen do trabalho e da exploração contra a classe trabalhadora migrante que também tem todo o direito de se aventurar nesses lugares. Também é importante saber que muitos desses espaços culturais, muitos desses espaços urbanos, muitos desses espaços públicos foram construídos com a exploração do mundo e com a exploração da mão de obra dos seguros. Por fim, ocupá-lo não reivindica apenas que seja um ato de resistência, mas também um ato de recuperação, o que é do mundo.[52]

A reflexão de Ortiz foi mais além da pergunta da porta na cena das obras em exposição e introduziu a crítica ao conjunto político-ideológico-econômico no que se ubica a instituição como parte da posição política do artista, de seu compromisso com “sua gente”. Esta crítica trata de ser as instituições ocidentais imunes, mais preocupadas com a singularidade da obra cuja riqueza de relações é ignorante. Para a instituição ocidental, as relações sociais nas quais se inscreve a obra são algo exterior à sua singularidade, apenas um impulso do qual nasce o ato criativo para aquele que dirige toda a sua parafernália. Sem embargo, como apunta Mijail Mitrovic em seu recente estudo do contexto político da arte peruana nas décadas finais do século veia,[53] devemos entender as obras como “recortes de lo concreto”, pues se trata de “la riqueza das relações sociais congeladas na aparência de produto acabado”[54] o que interessa para a análise, o estúdio e a apresentação das propostas artísticas que também se convertem em reflexo de uma realidade à qual aludem e interpelam. Da perspectiva da montagem dialética, o conjunto dos quipus no Príncipe Potosí tem muito que ver com a criação de uma trama que é visível ou reflete a totalidade das relações naquilo que é possível inscrever nas obras. Esta riqueza de relações Wynter incluía a denominação poética social (sociopoética) e o lingüista soviético Voloshinov poética sociológica.[55] Que esta perspectiva autenticamente radical na visibilidade dos contextos materiais com todas as suas violências, assim como pues, materialista, foi ninguneada em O Quilombismo mostra até que ponto O Quilombismo e o HKW dependem da episteme ocidental que tanto se critica. Una episteme que, puesto de una manera grosera, paga los salarios. Como disse antes, O Quilombismo há querido ser o que não há podido ser.

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